O lançamento do “Livro Branco – Recomendações para Prevenir e Combater o Casamento Infantil, Precoce e/ou Forçado”, no passado dia 29 de outubro, na Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa, voltou a levantar a problemática deste “fenómeno invisível” e que muitas vezes não consta das estatísticas. O estudo com a participação de diversas entidades, apontou que entre 2015 e 2023, foram identificados 836 casamentos infantis, precoces ou forçados em Portugal. Os casos em maior número reportam a idades entre os 15 e os 18 anos. No entanto, houve 126 casamentos com crianças com idades entre os 10 e os 14 anos.
Um contexto que infelizmente não surpreende a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de Moura, já que também esta instituição participou no questionário mencionado em cima, sendo que para a presidente, Fátima Moreira, os números “não reflectem a realidade do nosso concelho porque este estudo realizou-se entre 2015 e 2023, logo apanhou a pandemia e durante esses anos nós não tivemos essas sinalizações”.
A enfermeira à frente da instituição de Moura desde abril deste ano, recordou que no pós-pandemia chegaram mais sinalizações à instituição, com dados mais recentes. “Posso dizer que este ano (2024), do volume processual que nós temos, cerca de 17% está relacionado com o casamento infantil, ou seja, 14 sinalizações, o que leva a outra questão importante: o absentismo escolar ou abandono escolar. Nós sabemos e faz parte das evidências científicas que o casamento precoce provoca estas situações de abandono escolar, quer anterior ao casamento, quer depois do casamento. É um fenómeno que acontece com frequência no nosso concelho, mas que infelizmente ainda está um pouco invisível e os dados que possuímos não reflectem com rigor esta realidade”.
Neste trabalho difícil, a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de Moura tem um papel definido e que consiste essencialmente “em verificar em que situação está a criança que foi sinalizada. Se está a ter os seus direitos à educação, se está de livre vontade na situação de casamento e também de verificar junto dos pais, porque são eles os detentores das responsabilidades parentais, se continuam a exercer estas suas funções”, declarou a presidente.
No âmbito das sinalizações, o primeiro passo e um dos mais importantes neste processo, Fátima Moreira assegurou que estas chegam à Comissão através de “diferentes entidades e muitas vezes até de forma anónima”.
Os casamentos infantis, precoces ou forçados afectam tanto rapazes como raparigas. Contudo, o caso do sexo feminino é mais grave devido à problemática das gravidezes também elas precoces. “Podemos dizer que os casamentos infantis para além de aumentarem o risco de abandono escolar e consequentemente colocarem em causa as oportunidades futuras e o bem-estar físico e psicológico das nossas crianças, sabemos ainda que ao casarem precocemente, têm mais probabilidade de engravidarem precocemente. Consequentemente aumentam os riscos de problemas relacionados com a gravidez e o parto que poderão futuramente ter impacto na sua saúde”, retratou a responsável da instituição.
No entender de Fátima Moreira, é preciso agir muito mais do que apenas com medidas de sensibilização junto das comunidades. “É necessário adoptar uma legislação que defina este processo como um crime, apesar de sabermos que em Portugal a lei define que a partir dos 16 anos os jovens podem casar-se desde que tenham o consentimento dos seus progenitores. No entanto, existe esta incongruência na lei, ou seja, os nossos jovens têm a obrigatoriedade de ficar na escola até aos 18 anos, mas permite-se que se casem aos 16 anos. Seria bom definir a legislação para a idade mínima dos casamentos aos 18 anos, bem como assegurar uma recolha de dados mais actualizada que espelhasse a realidade nacional e do nosso concelho e que envolvesse as diferentes entidades”, sugeriu a enfermeira.
Uma dessas entidades é sem dúvida a escola. “Primeiro porque consegue a partir da educação destas crianças e destes jovens, sensibilizá-los para a importância de continuarem a estudar e de casarem depois de atingirem a maioridade. Além disso, a escola também está perto da família. Contudo, penso que todas as entidades devem adoptar um compromisso conjunto de tolerância zero ao casamento infantil”, reafirmou à Planície a presidente da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de Moura.