Quando a Rússia iniciou a invasão da Ucrânia, escrevi que, quando começassem a chegar, às centenas, os caixões de militares russos mortos em combate, para serem entregues às famílias e serem sepultados, e os milhares de feridos de guerra ocupassem todos os leitos dos hospitais, o povo russo se revoltaria, manifestando-se publicamente contra a guerra e obrigaria Putin a negociar a paz, ou as forças armadas russas o tirariam do poder político, mais ou menos como aconteceu com a ocupação soviética do Afeganistão, onde os russos tiveram cerca de 12 mil mortos, em dez anos de luta, e o povo nas ruas obrigou o governo a retirar os soldados de lá. Pois bem, no caso da Ucrânia, está evidente que me enganei. Há muito que aquele número de mortos russos em combate foi muito ultrapassado (em alguns, poucos, meses) e, apesar de algum evidente descontentamento popular, não se vê russos manifestando-se nas ruas contra a guerra e, aparentemente, suportando, melhor do que nós, ocidentais, esperávamos, as sanções impostas à Rússia. Porque será que isto está acontecendo assim?
Em primeiro lugar deve notar-se que o Afeganistão é país estrangeiro para os russos, mas a Ucrânia não o é, para a maioria dos russos (53%, conforme vos escrevi no meu anterior artigo publicado por A PLANÍCIE), logo, lutar por terra que se pensa ser nossa, para a libertar, é muito diferente (em ânimo e vontade) de se lutar em terra alheia, por um objectivo que o povo não entende bem qual seja. Depois, é preciso entendermos quem está, de facto, lutando dentro da Ucrânia, sendo importante salientar que, dizer que são russos que lá estão, é demasiado simplista. A Rússia actual é uma federação de estados, que vai do Cáucaso (onde tem muitos povos de origem árabe e turca) à Sibéria (lar de muitas etnias asiáticas), sendo que apenas os “russos étnicos” se podem considerar como europeus. O exército a que chamamos de russo, na verdade, é integrado maioritariamente por soldados oriundos das várias minorias (não “russos étnicos”, estes últimos sendo a maioria dos oficiais) que existem dentro da federação russa. E porque acontece isto?
Primeiro, devido a muito diferentes taxas de natalidade. Enquanto os “russos étnicos”, se reproduzem pouco, há muitas minorias se reproduzindo muito mais. Dentro da federação russa, os grupos étnicos que, estatisticamente, mostram ter mais de dois filhos por mulher (a “taxa de reposição” da população) são os muçulmanos e os orientais, ou seja, tais grupos possuem muito mais jovens disponíveis para se alistarem no exército da federação. O segundo motivo é a pobreza, sendo claro que os pobres servem nesse exército, mas os ricos não. Na federação o alistamento militar é obrigatório, porém, quem é rico sempre arranja um forma para escapar disso, como, por exemplo, estando numa universidade. Enquanto nos EUA os estados pagam as faculdades aos cidadãos que se alistam voluntariamente e querem estudar, na Rússia as pessoas inscrevem-se nas faculdades (pagando para se inscreverem) para escapar do alistamento militar (não estudando e sendo reprovados, mas continuando a estarem inscritos, não tem problema, pois continuam nas faculdades, até ultrapassarem a idade para se alistarem, o que só está ao alcance financeiro dos “russos étnicos” ricos). Quem não tem dinheiro, como é o caso das várias minorias e dos “russos étnicos” pobres, são os soldados que vão para a Ucrânia. É como se fosse um castigo, por estarem longe dos centros de poder e da elite economico-social e cultural de Moscovo e de São Petersburgo. Em outras palavras, a grande maioria dos que estão morrendo na Ucrânia é vista, pelos donos do poder na Rússia, como “carne para canhão”, cujas vidas valem algum dinheiro importante para a respectivas famílias (um pequeno subsídio monetário – equivalente a cerca de dez mil euros – como indemnização pela morte em combate de seu ente querido, coisa que não acontecia quando da guerra no Afeganistão, ou seja, um aprendizado que veio de lá), minimizando muito a possibilidade da revolta popular das minorias citadas.
Mudando de assunto, uma NOTA FINAL: voltaram a Moura as festas de Nossa Senhora do Carmo. A fé dos mourenses na Senhora do Carmo continua enorme, felizmente. O problema é que a parte pagã das festas (não sou contra ela, note-se bem) transformou-se numa bebedeira coletiva, em bacanais que devem lembrar os do declínio da antiga Roma, inclusive com cenas de atentado ao pudor, à vista de todos. Não se deve continuar assim. A liberdade não se pode confundir com libertinagem.