As autarquias têm sido, e começam a ser cada vez menos, uma das mais belas criações do 25 de abril. Há dias, conversava com um amigo, que me contrapunha as vantagens dos sistemas italiano e espanhol, em detrimento da nossa muita compartimentada organização municipal. Contra-argumentei com factos simples: 1) A Coroa de Aragão só foi formalmente extinta no início do século XVIII (e o problema de fundo permanece por resolver) e 2) Itália é uma criação oitocentista. Espanha baseia-se em regiões/reinos antigos, Itália viveu a partir de verdadeiras cidades-estado, poderosas e independentes. Portugal teve Lisboa, muita paisagem e um poder local sempre incipiente, apesar da tradição municipalista.
As autarquias, renascidas a partir de 1976, foram um verdadeiro e generoso achado do 25 de abril. Recolocava-se em cada local a decisão do seu destino, dotando os concelhos de meios para trabalhar. As Leis de Finanças Locais têm, contudo, o insólito recorde de nunca terem sido cumpridas. Nunca. Nem uma só.
É verdade que as autarquias foram ganhando peso, que se fizeram, em todo o País, coisas extraordinárias e inovadoras. Que o País deve muito às autarquias é algo que não merece grande discussão. Mas não é menos verdade que foi esquecida uma lei fundamental: o poder não se partilha, conquista-se. E assim, lentamente, pouco a pouco, o Poder Central foi empurrando para as autarquias as tarefas mais rotineiras e menos interessantes. Orçamentos maiores, mas amarrados a mais despesas correntes. As mais recentes “transferências de competências” (do agrado de muitos autarcas, que assim passam a dispor de um verdadeiro poder de redistribuidores de pequenas benesses) são uma verdadeira armadilha, que ameaça fazer implodir muitas Câmaras Municipais. Leio frases extraordinárias e deprimentes, como a de um presidente de câmara que afirmou “o Município de […] irá garantir um milhão em vencimentos”. Recebe-se dali, paga-se aqui. Ou seja, a assunção da menoridade de um cargo em todo o seu esplendor.
Carlos Moedas, presidente da Câmara de Lisboa, veio dizer há dias que “não podemos ser tarefeiros do Governo”. Sem dúvida. Tem toda a razão. Vale a pena recordar que há autarcas que foram governantes e há governantes que foram autarcas. Vale a pena recordar isso. Porque, sei-o por experiência pessoal, o País precisa de um Poder Local forte, autónomo, independente e transparente. E não de autarcas-funcionários com a missão de assinar cheques.